terça-feira, 27 de novembro de 2012

Capítulo 35- Um Tritão se Eleva - Parte Três


   Finalmente a alcancei. Enquanto nadava o mais rápido que podia pela água gelada do mar, avistei a sombra de Lúcia voando sobre a água, e remei com força com minha barbatana para emergir.
Ao pôr a cabeça pra fora da água, vi uma grande vala próxima a uma ilha, onde Lúcia pousou. Ali era a morada das sirenas. Devia ser ali também onde vários navegantes acabaram sendo mortos e navios afundados pelas vozes delas. Ou quem sabe, elas os comiam antes... Enfim.
Me aproximei, sempre seguindo Lúcia enquanto podia. Ela estava muito alto, não conseguiria alcançá-la. Ah, droga, se eu tivesse o poder máximo do meu muiraquitã...
-Como assim, ela não está aqui?! –Lúcia gritou com alguém, acima de mim. Olhei para cima com cuidado, tomando cuidado para não ser visto.
-Alteza, calma. Ela apenas foi informada de que uma das sirenas havia sido machucada e foi procurá-la. – Uma outra sirena respondeu.
-Acontece que essa sirena era eu! A Lixia e aquela corja de amigas dela me perseguiram hoje de manhã e me deram uma surra. – Ela respondeu, andando de um lado para o outro, impaciente.
-Oh, nossa... Mas como você se curou tão rápido, princesa? – A sirena gorda perguntou. Lúcia ficou calada por alguns minutos.
-Não importa. – Ela respondeu. Mas a outra sirena pareceu entender na hora, e fez uma cara de decepção, mas era possível ver que ela não queria o mal à Lucia.
-Alteza... É por isso que muitas aqui não gostam de você. Ainda insiste em entrar em contato com humanos! E principalmente com sereianos! – Ela falou, pondo a mão no ombro de Lucia.
-Mas eu... – Lucia soltou um suspiro pesado, e pôs a mão na testa. – A minha vida toda fui sempre uma garota solitária. Nunca tive nenhuma amiga, porque todos os meninos se sentiam mágicamente atraídos por mim, e as meninas me odiavam! Mas eu não tinha culpa, não fazia idéia de que esse era meu poder, nem imaginava que tipo de criatura eu era.
Então era isso? Por isso que eu parecia gostar tanto dela, era só porque ela tinha uma beleza mágica de sirena?
-Entendo muito bem o que se passa com você, querida... Mas na minha opinião, como princesa, você deveria se submeter ao gosto do seu povo, não acha? Já que essa sua atitude não agrada o povo, pra quê criar mais reboliço? – A sirena gorda perguntou.
-Sim, sim... Eu vou fazer isso. Vou ficar longe dos humanos, dos meus pais adotivos, das minhas amigas... Do Pedro...
De mim? Não!!
-Todos vão ficar bem mais seguros e felizes sem a minha presença. –Lúcia falou.
-Eu não vou!!
Não consegui me controlar. Gritei mesmo o que estava na minha cabeça.
Lúcia insintivamente abaixou a cabeça e olhou para a fileira água do mar que passava pela fenda onde ela estava. Ela pareceu ultra chocada ao ver meu rosto, simplesmente não acreditava que eu tinha sido tão burro e impetuoso a ponto de pôr a minha vida e a dela em perigo. Ela eriçou as asas e com apenas uma batida delas pairou na beira da água, olhando com um misto de fúria e desespero para mim. Ela agarrou meus ombros nus com suas mãos e me olhou bem fundo nos olhos.
-FICOU LOUCO??!! O QUE FOI QUE EU FALEI SOBRE ME SEGUIR?!!
-Eu não podia deixar que você se sacrificasse. –Respondi.
-O que eu faço não é da sua conta, Pedro, por favor... Eu nunca vou me perdoar se alguma coisa acontecer com você! – Lúcia exclamou, me balançando desesperada.
-Então me deixe ficar! Eu posso ficar com a sua mãe, nós podemos dar uma lição naquelas sirenas que tentaram te matar!
-Pedro, por favor... Você não... Ah meu Deus!!
Não precisei olhar para trás para confirmar o que meu coração já sentia. Milhares de sirenas voavam atrás de nós, todas morrendo de vontade de me trucidar e de expulsarem Lúcia dali.
-Estão vendo?! Eu disse a todas vocês. Texíope não tem cacique para ser nossa nova princesa. – A sirena que atava Lúcia mais cedo falou, devia ser a tal de Lixia.
-E posso dizer que você tem? – Lúcia perguntou, olhando séria para ela.
-Qualquer uma tem mais direito à liderança do que você, uma imunda que se mistura com humanos e sereias!! – Lixia gritou.
Lúcia abriu a boca e soltou um pio de águia aterrorizante, que me fez gelar a espinha. Lixia fez o mesmo, e as duas voaram rápidas pelo ar, até se agarrarem e começarem a lutar, dando batidas com a asa no rosto da outra, tentando arranhar com as garras dos pés, chutes, puxão de cabelo...
Desviei minha atenção delas e olhei para a frente. Vi que as outras sirenas nem se importavam com a luta, apenas voaram na minha direção. Rapidamente, tramei um esquema de fuga. Iria mergulhar e nadar desesperadamente para longe, até encontrar um acquatransporte e voltar para casa. Mas claro, as sirenas também são criaturas marinhas, elas iriam mergulhar e me perseguir debaixo d’água. Qualquer tática parecia inútil, era impossível escapar!
A não ser que uma imensa cortina de larva aparecesse rapidamente e me protegesse do ataque das sirenas. E foi o que aconteceu.
Olhei para cima e vi meus amigos, todos transformados com o poder máximo do muiraquitã, voando com suas imensas barbatanas dianteiras e tridentes de pedras preciosas. Raíque estava com o tridente erguido, e dele saia uma espécie de cachoeira de larva, que me protegia com seu calor.
-Achou mesmo que a gente iria te deixar sozinho, Pedrão?- Guto e Raíque perguntaram ao mesmo tempo. Eu apenas sorri, imensamente aliviado. Raíque desfez a cortina de larva, e Norato voou até a minha frente.
-Vai atrás da Lúcia, eu dou um jeito nessas gaivotas barulhentas! – Norato falou. Ele baixou o tridente, e o cravou  com força na água, e nesse ato, criou uma enorme onda com sua super força, fazendo as sirenas piarem assustadas e serem levadas para o outro lado da vala.
-Samu, me dá uma mãozinha! – Eu gritei. Meu amigo loiro apontou o tridente para mim, e eu comecei a levitar até onde ele estava. – Vamos até a Lucia, ela tá em perigo!
Ele voou até ela, remando com a cauda e as barbatanas dianteiras, até achar Lúcia exausta e com as asas feridas. Seus cabelos assanhados, a boca sangrando e o suor na testa... Lixia não estava melhor. Lucia havia arranhado sua cara, e nela estava a marca das suas garras. As duas ofegavam, exaustas com aquela luta.
-Já cansou, princesa? Tá pronta pra me ver sua morte? – Lixia perguntou, dando um riso malicioso.
-Só vou cansar quando acabar com a sua raça!! – Lucia gritou, voltando ao ataque, agarrando-a pelos cabelos e dando chutes com o joelho em sua barriga.
-Nossa, e pensar que eu sempre adorei ver luta de mulher. – Guto falou, se aproximando de mim e de Samuel.
-A gente tem que fazer alguma coisa, elas vão acabar se matando desse jeito! – Samuel falou.
-Tem razão. – Eu falei. Ainda sobre o poder telecinético de Samuel, eu remei com a cauda até Lúcia e fiquei na frente dela.
-O que tá fazendo?!  - Ela perguntou, tentando se livrar de mim.
-Não vou deixar você se matar assim. – Eu falei.
-Oh, que fofinho, o peixinho protegendo a galinha choca... Pena que essa águia aqui vai comer os dois! – Lixia gritou, abrindo a boca e mostrando a enorme fileira de dentes que ela possuía. Ela foi se aproximando de nós, mas eu ergui as mãos e soltei a mais forte descarga elétrica que já soltara na vida. A sirena se contorceu toda, revirando os olhos e batendo o queixo. Porém, percebi que ela conseguiu se acostumar com o choque, parecia se soltar dele. Fui soltando toda a minha energia nela, trincando os dentes e gritando pra soltar mais a minha força.
-Pedro!! Para com isso!!- Ouvi Norato gritar, preocupado comigo.
Gritei de novo, soltando mais um monte de raios verdes em Lixia, mas ela já havia se livrado do meu ataque, e agora só fazia rir da minha cara.

-QUE BAGUNÇA É ESSA?!

Todos ouviram a rainha das sirenas perguntar aos gritos. Porém, até para a minha surpresa, as sirenas não pareceram temer tanto a sua presença.
-Ah, sim, Majestade. Sua filha começou a bagunça. -Lixia falou, se afastando de mim e apontando para Lúcia, que já estava quase desmaiando no ar. – E sou eu quem vai limpá-la!
Lixia abriu a boca  bem aberta, e como uma serpente peçonhenta, se aproximou rapidamente de Lucia, pronta para cravar os dentes em seu rosto e arrancar a sua cabeça.
-NÃÃÃO!!
Aquele último golpe fora o meu fim.
Joguei mais um jato de eletricidade em Lixia, fazendo-a cair para a esquerda, mas cheguei a ver que ela se recuperou e voltou a voar.
Já eu não.
Minha vista escureceu, meu coração bateu acelerado, e meus sentidos todos se apagaram. Senti meu corpo caindo, e caindo...
-PEDROOO!!
Meus amigos gritaram por mim, e ainda voaram ao meu alcance, mas eu cai na água rápido como uma bala de canhão.
Por mais estranho que pareça, comecei a afundar, leve como um pedaço de papel na água.
Pelo menos eu fiz o que devia ter feito.
Protegi a Lúcia, fui fiel aos meus sentimentos, e não deixei meus amigos na mão.
Só esperava que eles dessem a noticia da minha morte de modo calmo pra minha mãe e pro meu irmão. Não queria que eles chorassem tanto por mim.
Quem sabe seria melhor assim. Minha vida não fora feita pra ser... Uma vida de tritão.
Eu não nascera para isso.
Não mesmo.
Senti a areia fina do fundo do mar. Aquele seria a ultima sensação macia que eu sentiria.

Mas... Ainda não acabou. Eu ainda podia sentir algo.
Senti meu colar. O muiraquitã pingente do meu colar emanava um calor forte... Muito forte. De repente, eu comecei a sentir uma forte onda elétrica percorrendo tudo em mim. Meu peito, minha cintura, meus braços, cabelos e minha cauda... Senti até a última escama uma pontada de choque me percorrer.
E abri os olhos. Eu podia enxergar! Podia sentir todos os meus sentidos. E senti algo na minha mão. Uma coisa fria e roliça, mas quente e... Um tridente! Verde e brilhante, com algumas faíscas saindo das pontas.
Meu corpo se moveu sozinho. Minha barbatana não se movia, mas eu flutuava rápido como um cometa para cima.
E foi quando senti o ar novamente percorrer o meu corpo, e uma imensa vontade de gritar surgiu em mim.
Soltei um grito forte e potente, que se misturou com o som do trovão que ecoou pelo céu. Raios verdes brilharam no céu, e eu flutuei na água... Com o meu poder do muiraquitã máximo.
-Pedro! – Raique exclamou, chocado.
-Ele se transformou! Mas... Como? – Norato perguntou.
-Isso não é possível! – Samuel falou, ofegante.
-Caraaca, que foda!! – Guto gritou.
Todas as sirenas me olhavam com surpresa. A maioria estava maravilhada com a força e poder que emanava de mim. Até a Rainha delas, estreitou os olhos e encolheu-se um pouco com a minha presença.
Calado, aproximei-me de Lúcia e de Lixia. Lúcia me olhava encantada, como se eu fosse um rei coberto de jóias, e Lixia parecia chocada por eu ser o mesmo tritão que a atacara inutilmente há minutos atrás.
-Vai mesmo atacar a sua princesa? – Perguntei. Senti a força emanando da minha voz, eu mesmo me surpreendi.
Lixia demorou para responder, como que calculasse o que falar.
-Quem é você pra me questionar? Só porque ganhou uma cauda mais comprida, um cabelão e um garfo gigante não quer dizer que deixa de ser uma aberração de homem peixe!
Assim que ela falou aquilo, demorei um pouco para me olhar. Em meus ombros haviam ombreiras fortes feitas de jade, assim como protetores de braço, uma espécie de coroa de jade em minha cabeça, prendendo meu cabelo, que agora estava bem maior, quase no fim da minha omoplata, e minha cauda... Nossa, minha cauda estava mesmo enorme! As barbatanas dianteiras estavam iguais às de um peixe voador, só que num tom de verde brilhante e ofuscante. Minhas escamas estavam pretas misturadas com tons de verde escuro e claro, e minha enorme barbatana estava mais fluida e majestosa, e num tom de verde imperial bem potente. Eu estava mesmo incrível.
-Mãe, Lixia e suas amigas me machucaram hoje de manhã. Elas alegam que eu não sou digna do meu lugar. –Lúcia falou, olhando para a mãe e mostrando os machucados. A rainha arregalou os olhos e cerrou as sobrancelhas, numa cara de fúria amedrontadora.
-É verdade, Lixia? – Ela perguntou.
-Não nego, Majestade. Ela não merece ocupar cargo de princesa, veja como ela é amiga desses tritões, eles que quase...
Lixia não pôde terminar de falar. A rainha ergueu a mão e com um gesto, amassou a garganta de Lixia sem nem tocá-la. A sirena ainda falava, mas seus olhos foram ficando brancos, sua voz sumiu e com um ultimo suspiro, ela despencou na água gelada do mar.
-Quem ousar discutir as minhas determinações, sofrerá o mesmo destino. – A rainha falou, sua voz ecoando por toda a vala, e deixando todas as sirenas assustadas. Ela voltou-se para mim, e para meus amigos, que agora estavam atrás de mim. – E sugiro que vocês sumam daqui agora. Como eu havia dito antes, sereias e sirenas não devem se misturar. Esse caos em nossa sociedade só ocorreu com a sua mera presença.
-Não se preocupe. Não vamos mais incomodá-la, prometo. – Falei em nome de todos. Dei uma última olhada para Lúcia. A definitiva. – Adeus, Texíope.
Eu tomei a frente de meus amigos e mergulhei, sem olhar para trás. Nós mergulhamos no mar e nadamos para longe o mais rápido que podíamos.

Não quis saber como Lúcia estava, depois daquela noite. Pra falar a verdade, minha noite estava agora bem mais tranqüila, já que sabia que o perigo havia passado e todos estavam em seus devidos lugares.
Samuel disse que havia descoberto o porque da minha transformação sem precisar do flúido que dá o poder máximo do muiraquitã. Segundo as pesquisas dele, um dos principais ingredientes para criar essa gosma é pó de muiraquitã de rã, ou seja, igual ao meu. As pesquisas diziam que o meu muiraquitã era considerado o mais poderoso criado pelas Amazonas, pois significava a conexão entre a Lua e a Água, entre a deusa Jaci e Iara, a mãe d’água.
Enfim, tudo estava perfeito do jeito que estava.
Eu finalmente esquecera Lucia. Ou melhor, Texiope.
Ela realmente não era a garota certa pra mim.
Só em ver o quão difícil seria a nossa história é que me dei conta. O amor deve ser algo bom, algo saudável e divertido. Claro que há seus dilemas e dificuldades, mas é melhor considerar que se algo é mesmo tão difícil, talvez o melhor seja procurar algo mais saudável para os dois. Talvez o melhor seja primeiro amar a si próprio.
E com isso, eu termino a minha noite. E fui dormir sorrindo, por estar realmente curtindo cada vez mais essa minha vida de tritão.



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